[Abortos Literários #20] - Ô, tempo rei
Reflexões sobre maternidade e ancestralidade através da vida (e obra) de Gilberto Gil.
O filho perguntou pro pai
"Onde é que 'tá o meu avô
O meu avô, onde é que 'tá?"O pai perguntou pro avô
"Onde é que 'tá meu bisavô
Meu bisavô, onde é que tá?"Avô perguntou "ô bisavô
Onde é que 'tá tataravô
Tataravô, onde é que 'tá?"Tataravô, bisavô, avô
Pai Xangô, Aganju
Viva Egum, babá Alapalá
Na semana passada fiquei obcecada pela série documental da Família Gil, que acompanha um dos principais músicos do Brasil, o incrível Gilberto Gil, em uma turnê pela Europa com toda a sua família. São quase 40 familiares unidos, incluindo sete filhos, doze netos e uma bisneta. Ao longo dos episódios e através das músicas, é homenageada a história desta importante figura. São duas temporadas: Em Casa com os Gil (da preparação da turnê) e Viajando com os Gil (que mostra os 30 dias de turnê).
Mas, também, achei interessante o tema da ancestralidade apresentada durante a série. Da perpetuação das gerações, como diz a música Babá Alapalá. Eu nunca quis ter filhos. Na infância, quando me imaginava “grande”, a imagem que me vinha a cabeça era eu chegando em casa depois de um dia de trabalho e escrevendo no computador com um gato. Eu sonhava em conhecer o mundo, em viver experiências, em viajar, em conhecer diferentes culturas. Ter uma família significava criar raízes e eu queria criar asas.
Por outro lado, sou uma pessoa que vem de uma família grande. Que nasceu acostumada em ser a irmã mais velha, de ter a responsabilidade de cuidar dos mais novos, e que adora um almoço de domingo em família. Cresci em uma família que, apesar de seus problemas – como toda família – é extremamente amorosa entre si. Que ri junto, brinca junto e briga junto.
As dinâmicas da família Gil me lembraram a minha própria família. Há alguns anos venho questionando a minha vontade de não ter filhos, em alguns momentos tenho a certeza que a maternidade não é uma experiência que desejo viver, em outros parece existir uma possibilidade, um desejo. Até o momento, a resposta que cheguei é que serei feliz com qualquer uma das possibilidades – com ou sem filho, minha vida tem sentido nela mesma.
Mas, desde o nascimento dos meus irmãos mais novos, tenho experimentado a passagem do tempo de uma forma diferente. A cada vez que vou no Acre, eles estão muito diferentes – com novas descoberta, novos aprendizados e passando por novas experiências. Se em um ano não sabiam formar frases, no seguinte contam histórias inteiras. Se antes sua atenção era toda para mim, no ano seguinte estão mais focados em seus amigos ou nos videogames. Em um ano, não gostavam de futebol, e no seguinte sabem toda a escalação do Brasil na Copa. Também descubro uma nova forma de amar e de cuidar, que não tive na minha relação com meus outros dois irmãos, em que a diferença de idade é menor.
Nas crianças, vemos a ancestralidade, entendemos ela. O filho, o pai, o avô, o bisavô, o tataravô. As histórias e traumas familiares que se repetem e os ciclos que são quebrados. A geração, uma após a outra, ensinando e sendo ensinada. Os legados que deixamos para o mundo. E a preocupação real de qual será o futuro dessas crianças – principalmente em um mundo tão desigual como o que temos e uma eminente crise climática que pode gerar a extinção de toda a raça humana. Em meio a isso, o tempo, que passa, que continua, que faz os bebês virarem crianças, depois adolescentes e então adultos.
De me ver e me entender como adulta, como filha, como neta, e como parte desta ancestralidade. De pensar na finitude da vida, na morte e no passar do tempo. Como diz aquela outra música do Gil:
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorreiTempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Caos Criativo
[sonhos]
hoje acordei com todos os meus demônios à flor da pele
me recolhi em minhas inseguranças e desapareci
hoje acordei banhada em saudade
de tudo que nunca poderá ser
it would've been fun if you would've been the one?
hoje acordei com as risadas ecoando no meu ouvido
lembrando de toda a intimidade construída em segredo
sempre que estou indo embora
minha mente me traz de volta
àquelas tardes de domingo
que me esforço tanto para esquecer
minha inseguranças vão mudando de alvo
mas o sentimento é sempre o mesmo
estou fadada a repetir a mesma história (?)
de novo e de novo
até se tornar insustentável
até quebrar e me partir ao meio
mais uma vez
Na Minha Estante
1. Maria, uma professora de Filosofia na rede particular, acaba engravidando de um colega de trabalho durante uma viagem de férias em Ubatuba. Agora ela terá que se ater a uma busca profunda e interna que lhe ajude a decidir o que fazer com a gravidez. Esta é a sinopse do livro antes que o fruto caia, primeiro romance de Andreas Chamorro, potente escritor que São Paulo e a internet me proporcionaram conhecer. A obra está disponível para leitura no Kindle Unlimited, clique aqui para baixar.
2. O Canal Flor e Manu fez um vídeo sobre ter ou não filhos, que recomendo para quem, assim como eu, tem dúvidas sobre o desejo da maternidade (ou da parentalidade). O vídeo também compôs as referências para as reflexões dessa newsletter.
3. Inaugurou em Rio Branco o site O Varadouro, uma releitura do jornal independente e contra a ditadura de mesmo nome que funcionou na década de 70. O importante periódico, que apoiou a luta dos povos da floresta, circulou entre maio de 1977 a dezembro de 1981, totalizando 24 edições. Agora está sendo refundado em formato digital, com o mesmo espírito de luta pela Amazônia e as pessoas que vivem nela. O projeto é encabeçado pelo jornalista Fábio Pontes e conta também com nomes que formavam a redação original, incluindo Élson Martins, Silvio Martinello, Arquilau de Castro Melo e Antonio Alves (também conhecido como meu pai). Recomendo fortemente! Acesse aqui.
4. Que eu gosto de newsletter não é segredo para ninguém, assino várias. Por isso, recomendo o texto do Matheus de Souza, grande nome na área, que indica 10 newsletters diferentes para você acompanhar. Muita dica boa de leitura! Leia aqui
5. Para quem mora em São Paulo, a plataforma Mubi está realizando um festival de cinema de 14 a 16 de julho, na Cinemateca Brasileira. Na programação, um especial dedicado ao diretor Wong Kar Wai, além de filmes famosos na plataforma. Os ingressos são gratuitos, para participar é preciso retirar os bilhetes no local, uma hora antes de cada sessão. Veja aqui a programação completa.
Ouça: Caetano Veloso, Gilberto Gil - Não Tenho Medo da Morte
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