[Abortos Literários #18] - Aquilo que não conseguimos falar
Drive My Car, filme do cineasta Ryûsuke Hamaguchi, trabalha dois temas bastante complexos: o luto e a (falta de) comunicação.
Existem muitas formas de contar uma história. E, em alguns casos, é a forma que dá sentido à narrativa. Este é o caso de Drive My Car, filme do cineasta Ryûsuke Hamaguchi, que trabalha dois temas bastante complexos e muito abordados na contemporaneidade: o luto e a (falta de) comunicação. Essa história poderia ser filmada de muitas maneiras, mas é através da contemplação que iremos submergir lentamente nos sentimentos do protagonista.
Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) é um ator e diretor que há dois anos perdeu a esposa, a roteirista Oto. Este é o prólogo do filme, que dura 40 minutos, um tempo que poderia ser excessivo em um longa-metragem tradicional, mas aqui se faz extremamente necessário. Nele, vemos a relação íntima do casal, que compartilha o trauma de perder uma filha e se conecta através do sexo e dos seus trabalhos – Yusuke ajuda Oto a escrever suas histórias, Oto ajuda Yusuke a decorar as suas falas. Uma parceria que parece ser perfeita, exceto pelo fato de Oto ter um amante. Yusuke sabe. Certo dia ele chega em casa e pega os dois juntos, mas vai embora sem ser visto e não conta para a esposa. No começo, a passividade do personagem chega a ser frustrante e incompreensível. E quando Oto morre inesperadamente, um mundo de questionamentos fica sem respostas para o protagonista - e para nós, o público.
Dois anos depois da morte da esposa, Yusuke vai dirigir uma peça em Hiroshima. É neste momento que o filme realmente começa. Na cidade, ele é obrigado a entregar o seu carro para uma motorista local, Misaki, que irá conduzi-lo por questões de segurança. A relação entre os dois personagens começa distante e desconfiada, mas aos poucos o diretor irá encontrar na jovem uma companhia para a sua dor. Misaki, que também carrega em sua história um luto imenso e uma vida trágica, irá encontrar no cliente alguém para partilhar suas angústias.
Outro ponto importante do filme é a construção da peça russa Tio Vânia, que está sendo montada pelo protagonista – a mesma peça que ele interpretou na época em que a esposa morreu. É nela que Yusuke terá que trabalhar com o amante de sua falecida esposa, o jovem ator Koji Takatsuki. Em vez de uma rivalidade entre os personagens, o que se encontra aqui são duas pessoas perdidas, com personalidades muito diferentes, que reconhecem um no outro a dor de perder a mesma mulher. Novamente, uma quebra de expectativa. No começo, é difícil entender as motivações de Yusuke para agir de forma tão passiva a todos estes acontecimentos, mas à medida que vamos mergulhando em sua jornada e em seus sentimentos, as peças vão se encaixando e começamos a compreender o personagem e a profundidade do seu luto. À medida que ele vai se abrindo com Misaki, vamos entendendo outras camadas do prólogo, que não estavam óbvias, e são aos poucos reveladas.
A produção da peça é um ponto muito importante da narrativa, não apenas por causa da relação entre os personagens que se estabelecem por causa dela, mas principalmente porque é através do texto interpretado no palco que muitos dos sentimentos de Yusuke são verbalizados. Cada ator da peça fala uma língua diferente e esta metodologia de interpretação promove uma das questões mais significativas do filme: como é possível se comunicar sem entender o que o outro diz? É justamente dessa impossibilidade de se comunicar que os atores – e principalmente a dupla Yusuke e Misaki – precisam se libertar.
A peça representa exatamente a dificuldade que Yusuke tem em expressar seus sentimentos – não apenas no luto pela esposa, mas na própria relação que tinha com Oto. Aqui, o que não é dito é tão importante quanto o que é verbalizado. Por isso, faz sentido os longos planos da obra. Os momentos de contemplação. As viagens de carros. Durante as três horas de filme, nada é por acaso. Drive My Car é um filme tão complexo e cheio de camadas, que seria necessário páginas e páginas de análise para destrinchar cada uma de suas cenas, com seus mais diversos símbolos e significados. Cada minuto importa, não exatamente para compor a narrativa, mas porque a forma faz o filme. Drive My Car não seria tão potente se escolhesse contar a sua história de outro jeito, de maneira mais rápida e tradicional. A sua beleza está no silêncio que se rompe aos poucos, sutil e contido, tal como Yusuke. Quando ele finalmente se liberta e consegue verbalizar a sua dor, sentimos junto com ele o alívio de colocar o luto em palavras. Em, finalmente, conseguir comunicar o que sente.
Caos Criativo
[o abismo]
entre o que digo
e o que sinto
há um abismo
de significados
é difícil colocar em palavras
todas as inconstâncias
da minha alma
calo
minto
diminuo
a minha dor
para ver se
ela cabe
dentro de mim
não tenho mais energia
para as minhas próprias profundezas
[entreatos]
sinto que minha vida está no entre. entre o amor que acabou e o amor que ainda vai vir. entre os objetivos que foram finalizados e aqueles que ainda vão ser criados. entre histórias, memórias, vivências, sonhos, dias. tudo aquilo que acontece nas entrelinhas, no espaço das estrofes, no subtexto do poema. um eu-lírico que nunca diz exatamente o que, onde, quando e por onde. a vida que acontece nas frestas, na espera, no tempo de passagem. entre atos. entre tudo aquilo que um dia foi e ainda será.
Na Minha Estante
1. Maratonei neste fim de semana a minissérie Clickbait, que conta a história Nick Brewer, um fisioterapeuta casado e com dois filhos que, certo dia, é sequestrado e aparece em vídeos na internet segurando placas em que confessa horríveis crimes. Entre elas, a mensagem: “Chegando aos 5 milhões de visualizações, eu morro”. A partir dos personagens na vida de Nick (sua irmã, sua esposa, seu filho, o investigador, etc), vamos descobrindo os mistérios acerca do sequestro e desaparecimento do personagem. A série começa muito forte, mas vai perdendo o folego ao longo da temporada e das excessivas reviravoltas na trama – a expectativa é que menos seria mais. Ainda assim, é um bom entretenimento para o fim de semana, difícil de largar depois que começa.
2. Carrie Bradshaw, Miranda Hobbs e Charlotte York estão de volta em mais uma temporada de And Just Like That, a continuação de Sexy and The City. E, apesar de ser sempre gostoso reclamar das péssimas escolhas de Carrie e suas amigas, fico mais uma vez com a sensação que esta nova temporada não tem muito o que dizer. Mas pelo menos é divertido ver a escritora pegando taxi com roupas estonteantes por Manhattan.
3. Quando aprendemos sobre os estilos literários, conceituamos que a crônica é um texto em formato de prosa que narra uma situação cotidiana, às vezes gerando uma reflexão sobre o tema. Ao ler o livro Nos poros do espelho, da escritora Mariana Maiante, nos deparamos com uma crônica em forma de poesia. Ou uma poesia-crônica. Mariana destrincha situações cotidianas e faz submeGostou? Então compartilha com alguém!rgir a poética naquilo que é mundano. Como uma Alice moderna, ela nos faz atravessas seu espelho pelos poros e descobrir um outro mundo, onde o que importa são as pequenezas da vida. Compre o livro através do instagram da autora: @mari_maiante.
4. Outra leitura da semana foi a zine Associação Livre, da escritora Monique Malcher. Memória, solidão, pandemia, medo e inconscientes se misturam em textos rápidos e potentes, que a autora vai amarrando sem amarrar em uma narrativa experimental tão própria. Os desenhos e colagens não apenas compõem, mas são também (partes do) texto – lembrando a beleza da publicação artesanal. Algumas coisas só podem ser ditas em formatos não tradicionais.
Para ouvir: The xx - VCR
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