[Abortos Literários #17] - A beleza do não-saber
O filme “Os Cinco Diabos”, da diretora e roteirista francesa Léa Mysius, nos obriga a lidar com a beleza e o desconforto daquilo que não se explica.
Na primeira cena do filme Os Cinco Diabos vemos Joanne (interpretada pela magnifica e hipnotizante Adèle Exarchopoulos) usando um collant de ginástica artística abraçada com várias outras garotas, também ornamentadas para uma apresentação, que choram enquanto observam uma enorme fogueira. As garotas estão de costas para nós, os telespectadores, mas Joanne vira-se para olhar a câmera. Observa alguém que não sabemos quem é. A cena é cortada brutamente e, assim como começou, termina sem nos dar uma explicação ou contexto. Ela será retomada ao final do filme, mas neste momento ficamos hipnotizados pela beleza de sua imagem e pelo mistério que ela proporciona. E, talvez, esta seja a melhor forma de resumir a obra da diretora e roteirista francesa Léa Mysius.
“Os Cinco Diabos“, que chegou aos cinemas brasileiros no último dia 30 de março e pode ser visto pela plataforma de streaming Mubi, é difícil de classificar. O filme faz um exímio trabalho de subverter as categorias do cinema. É um thriller, mas também é um romance. É um filme sobre viagem no tempo, mas envolvido em uma atmosfera de realismo fantástico. É, acima de tudo, um drama sobre a dependente relação entre mãe e filha. Além de Adèle, a obra conta com a participação de Sally Dramé, Swala Emati e Moustapha Mbengue.
Após a cena enigmática que inicia o longa-metragem, somos apresentados a vida de Joanne. Ou melhor, a vida de Vicky (Sally Dramé), sua filha. Uma garota de sete anos que vive em uma pequena cidade no interior da França com a mãe e o pai (Jimmy, interpretado por Moustapha Mbengue), sofre bullying e racismo dos colegas de escola por ser negra, e tem o costume incomum de coletar objetos para reproduzir o cheiro das pessoas a sua volta. A sua habilidade de identificar os diferentes tipos de aromas é o primeiro elemento fantástico e inexplicável que encontramos na obra, que em nenhum momento preocupa-se em explicar as regras deste universo. Para apreciar este filme, é necessário apreciar a beleza do não-saber, do não-entender, do mistério que se constrói e não é revelado.
Vicky tem um amor incondicional por sua mãe, Joanne, e por muitas vezes a relação das duas apresenta sinais claros de dependência. Vicky precisa de Joanne e a mãe, apesar de não demonstrar a mesma intensidade de sentimentos, também precisa da filha. Apesar de constantemente parecer colocar uma distância entre ela e a filha, e às vezes parecer sufocada com o apego da criança, é o seu amor pela filha que sustenta o seu casamento e a sua vida mundana como professora de hidroginástica. Sua identidade está atrelada ao papel de mãe e esposa, algo que ela desempenha de forma burocrática e sem emoção. Mas tudo muda quando Julia, a irmã de Jimmy, decide visitar e se hospedar com a família.
A partir do momento que a nova integrante chega, o clima melancólico ganha um peso ainda maior, pairando por toda a cidade - ou os poucos personagens que estão fora do núcleo familiar. Fica óbvio que há um assunto não resolvido entre Julia e Joanne, um ressentimento profundo entre elas, que reverbera em todos os outros personagens. E, no momento que a forasteira adentra naquele lar, Vicky deseja expulsá-la. Primeiro para proteger a mãe, depois para não perdê-la. Ao vasculhar os pertencer da tia, ela descobre um frasco que o forte aroma do líquido contido nele lhe faz desmaiar e voltar no tempo, na época em que Julia e Jimmy mudaram-se para a cidade, uma época em que sua mãe ainda era uma adolescente. E é através do cheiro que Vicky vai ir e voltar ao passado, tentando descobrir o trauma que une a sua família e como ele influencia na dinâmica da cidade em que vive.
Mas, ao voltar ao passado, a menina se depara com uma mãe que não a conhece, que não é sua mãe. Ela, então, precisa lidar com um mundo em que a vida da mãe não gira em torno da sua presença e isso é devastador. Como a própria menina resume o seu sofrimento: “Você me amava antes mesmo de eu existir?” questiona ela em determinado momento. Ao mesmo tempo, o retorno de Julia relembra Joanna quem ela era além dos papéis que desempenha, como mãe e esposa, fazendo-a questionar suas próprias decisões de vida.
Apesar dos elementos fantásticos que impulsionam a narrativa, é a dinâmica entre os personagens que realmente importa, e como ao inserir um novo elemento todos precisam se ajustar e se modificar. Ao final do filme, a sensação é que precisamos assisti-lo de novo, para tentar entendê-lo. Mas nunca será possível, não há explicações. É preciso aceitar aqueles elementos como eles se apresentam, e viver aquela experiência apesar – e talvez por causa – do desconforto do que não sabemos. Aceitar o inexplicável. Isso dá um aspecto quase literário ao filme, a sensação é que estamos lendo um conto, um recorte do tempo na vida daqueles personagens, em que o que não foi explorado nunca o será, mas sustentam em suas lacunas o que se apresenta em cena. Não se trata de uma falha no roteiro, mas uma decisão consciente de deixar alguns mistérios irreveláveis. A beleza do filme está justamente nas pontas que ele faz questão de não amarrar.
Caos Criativo
O vento frio do inverno batia em meu rosto, enquanto tentava coletar os pensamentos que insistiam em fugir para todas as direções. A lembrança do nosso último encontro e a saudade que há muito eu não sentia me acertou em cheio e, de repente, a sua ausência ficou tão palpável que parecia que fazia apenas alguns dias que você tinha ido embora. Me perguntei por quanto tempo aquele luto ainda iria me atingir de novo e de novo. Às vezes acho que nunca irei abandoná-lo, porque me desprender dele é deixar você ir para sempre, e eu não sou boa com despedidas. Me incomoda o pensamento de nunca mais te ver. Não parece real, por mais que seja. Fico pensando que vou te encontrar atravessando a rua, mesmo sabendo que não é possível. A sua ausência passa despercebida quase todos os dias, menos quando me vejo pensando em você, aí ela se torna quase insuportável. Sinto que preciso te deixar ir todos os dias, de novo e de novo, uma decisão consciente de nunca mais te ver. Uma decisão que não desejo tomar, mas que sou obrigada a aceitar. De novo e de novo. Até depois do fim.
Na Minha Estante
Quem decidir assistir ao filme Os Cinco Diabos, recomendo ver também a crítica cinematográfica da Isabela Boscov. Foi uma das melhores que vi sobre a película, e que mais se assemelha a minha experiência ao ver o longa-metragem.
Andei encontrando muitos livros bons disponíveis no Kindle Unlimited, assinatura da Amazon em que você pode pegar emprestado até 20 títulos disponíveis no plano. Para quem está procurando a próxima leitura, aí vai alguns dos títulos que despertaram o meu interesse: O Grande Gatsby (Francis Scott Fitzgerald); Um teto todo seu (Virginia Woolf); Água viva (Clarice Lispector); A filha primitiva (Vanessa Passos) e Sobre a terra somos belos por um instante (Ocean Vuong).
O Manu e a Flor anunciaram que estão retomando o seu canal do youtube, o que me fez lembrar o quanto gosto dos vídeos que eles fazem. Para quem não conhece, o canal é comandado pela atriz Maria Flor e seu marido, o psicanalista Emanuel. Juntos, eles discutem de forma despretensiosa sobre relacionamento e psicologia. O que mais gosto é ver a dinâmica entre os dois, sejam concordando ou discordando, sobre o tema proposto. O novo vídeo é apenas um anúncio sobre o retorno, tendo em vista que o canal ficou parado por mais de um ano, mas recomendo ver os vídeos antigos para quem gosta da temática.
Recomendo o texto da Aline Valek sobre a peça Esperando Godot, que conta de forma surrealista a história de duas pessoas esperando uma pessoa, o Godot, que nunca chega., E a peça se constrói na espera, no encontro que nunca se concretiza, e como podemos associar a obra a nossa própria vida. Mesmo nunca tento visto a peça ou lido o livro, o texto vale a pena pelas reflexões da escritora. Segue um trecho: “O projeto que não encontra interessados. O afeto que não encontra reciprocidade. O esforço que não encontra reconhecimento. A mensagem que não encontra resposta. O que não acontece talvez seja o melhor que poderia ter acontecido naquele momento”. Leitura excelente!
Assisti no fim de semana o filme AIR: A História Por Trás do Logo, que conta sobre a parceria da Nike com o então estreante Michael Jordan, na criação de uma linha de sapatos esportivo exclusiva para o jogador. Para além da história de Michael Jordan, o filme aborda a trajetória de Sonny Vaccaro (Matt Damon), o funcionário da Nike que criou a linha Air Jordan e apostou no jogador antes dele se tornar o maior jogador de basquete de todos os tempos. O filme, dirigido por Ben Affleck, não inova e segue uma linha clássica de contar este tipo de história, mas ainda assim diverte e desempenha o seu papel de entretenimento. Um filme sobre uma reunião de negócios poderia ser muito chato, mas conseguimos ficar engajados na história. Para variar, a sempre incrível Viola Davis, rouba a cena – vale a pena só para ver mais um desempenho deslumbrante da atriz.
Para ouvir: Céu - Chega Mais
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